segunda-feira, 31 de maio de 2010

O exagerado Berlioz

“Romântico? Não sei o que isso significa. Sou um clássico. Por clássico, entendo uma arte jovem, vigorosa, sincera, apaixonada, amante das belas formas, perfeitamente livre. Tudo aquilo que já foi produzido de grande, de corajoso: Gluck, Beethoven, Shakespeare.” A frase de Louis Hector Berlioz resume sua criação musical, quase sempre excessiva e de inventividade superior. E, apesar de negar, ele encarnou o protótipo do artista romântico, ao lado de Victor Hugo e Eugène Delacroix. Foi o poeta e escritor Théophile Gautier quem juntou o compositor, o romancista e o pintor, todos franceses, no que chamou de “santa trindade da arte romântica”.

Assim como Wagner, Mendelssohn, Tchaikovsky e Mahler, Berlioz foi muito respeitado como regente não somente de suas obras mas também de outros compositores. Dedicou-se à ópera e à música sinfônica, regendo com freqüência na Alemanha e Inglaterra, além da França. Deixou um importante legado para os futuros regentes ao escrever sobre as características dessa nova função e sobre a moderna orquestração. Seu tratado sobre a matéria é, até hoje, uma referência para alunos de qualquer escola de música.

Artista de seu tempo, Berlioz foi ligado ao movimento romântico francês e se tornou amigo de escritores como Alexandre Dumas, Balzac e Victor Hugo. A literatura é latente no trabalho do compositor. Muitas de suas melhores peças têm conexão literária. Para escrever A Danação de Fausto, ele se baseou em Fausto, de Goethe; para O Rei Lear, na obra homônima de Shakespeare; para Haroldo na Itália, em Childe Harold’s Pilgrimage, de Lord Byron; e, para Les Troyens, em Eneida, de Virgílio. Shakespeare aparece ainda como base para duas composições de grande relevância: o balé Romeu e Julieta e Béatrice et Bénédict.

Sua obra é cheia de contrastes, mudanças de clima e tempo, com uma orquestração rica, criativa e inovadora. Sua Sinfonia Fantástica é um belo exemplo. Além do uso de duas harpas, corne-inglês e campanas, essa é uma obra programática, ou seja, baseada em um texto que narra “episódios na vida de um artista”, como diz seu subtítulo. Berlioz colocou na peça muitos aspectos pessoais. Na época, ele vivia uma grande paixão pela atriz Harriet Smithson. Essa composição simboliza o nascimento do romantismo na França e da música programática, que seguiria com grande brilho pelas mãos de Liszt e Tchaikovsky.

No dia 11 de setembro de 1827, Berlioz assistiu a uma encenação de Hamlet, a mais celebrada peça de William Shakespeare. Mais do que prestar atenção ao drama, Berlioz fixou-se na beleza da famosa atriz irlandesa Harriet Smithson, que interpretava a personagem Ofélia. Mesmo não a conhecendo naquele momento, já que, logo após a apresentação, ela deixara Paris, a paixão foi instantânea. Harriet, com quem o compositor teria um casamento desastroso seis anos depois, foi a principal inspiração da criação mais famosa do compositor, a Sinfonia Fantástica, opus 14, também conhecida como Episódio da Vida de um Artista.

A obra foi composta em 1830 e apresentada pela primeira vez no Conservatório de Paris, no dia 5 de dezembro do mesmo ano, sob regência do maestro François-Antoine Habeneck. Após a estréia, Berlioz a revisaria exaustivamente até apresentá-la em seu formato definitivo, em 1845. A sinfonia é um marco do romantismo francês e apresenta diversas inovações para esse período, como ter tornado a experiência pessoal do artista fundamental para a composição. As paixões extremadas de Berlioz, que beiravam a loucura, o situam como um dos principais criadores do movimento romântico europeu.

Na Sinfonia Fantástica, Berlioz oferece ao ouvinte um programa (ou tema não musical) que descreve as sensações de um “jovem poeta possuído por uma onda de paixão”. No desespero de encontrar a amada, consome ópio, e as alucinações resultantes da experiência são contadas nos cinco movimentos que integram a composição. Berlioz, dessa forma, desobedece à estrutura formal da sinfonia ao acrescentar um movimento, o que não era comum até então, e inaugura uma música programática totalmente instrumental. Como o próprio francês gostava de frisar, a existência do tema não musical é indispensável para a total compreensão do plano dramático da obra. Mais do que qualquer outro compositor, Berlioz escrevia música estimulado por impressões literárias.

Outra marca relevante da Sinfonia Fantástica é a utilização de um motivo melódico que se repete e representa a amada do jovem poeta. Com o intuito de unificar os cinco movimentos da sinfonia, o compositor utiliza-se de uma idéia fixa (tema musical recorrente) que retorna em movimentos específicos e com variações. Com a Sinfonia Fantástica, Berlioz colaborou com a evolução do som da orquestra e impulsionou o progresso da música descritiva (a que ilustra personagens ou lugares) e pictórica (voltada para o estímulo das impressões sensoriais do ouvinte), o que influenciaria de maneira decisiva outros compositores. Apesar da genialidade, Berlioz nunca alcançou o sucesso e o reconhecimento em vida. Morreu pobre e absolutamente infeliz.

Sinfonia Fantástica, opus 14 – Episódio da Vida de um Artista
Texto de Hector Berlioz

Um jovem músico de sensibilidade doentia e imaginação ardente envenena-se com o ópio em um acesso de desespero amoroso. A dose do narcótico, fraca demais para levá-lo à morte, mergulha-o em um pesado sono, acompanhado das mais estranhas visões. Enquanto dorme, sensações, sentimentos e lembranças se traduzem, em seu cérebro doentio, em pensamentos e imagens musicais. A mulher amada tornou-se para ele uma melodia, como uma idéia fixa, que ele reencontra e ouve em todo lugar.

Primeira Parte: Devaneios, Paixões

Acima de tudo, ele se lembra do mal-estar da alma, da onda de paixões, da melancolia e das alegrias sem causa que experimentou antes da visão da mulher amada. Depois, do amor vulcânico que ela de súbito lhe inspirou, de suas delirantes angústias, dos furores de ciúme, do retorno da ternura e das consolações religiosas.

Segunda Parte: Um Baile

Ele reencontra a amada durante um baile que acontece numa majestosa festa.

Terceira Parte: Cena no Campo

Em uma noite de verão no campo, o jovem ouve dois pastores dialogando por meio de uma melodia rústica. Esse duo pastoral, o local da cena, o leve murmúrio das árvores docemente agitadas pelo vento, certa esperança que sentiu há pouco – tudo contribui para conferir uma calma incomum a seu coração e mais alegria a suas idéias. Mas ela reaparece e seu coração se parte. Dolorosos pressentimentos o agitam: se ela o enganasse... Um dos pastores retoma a ingênua melodia, mas o outro já não responde. O sol se esconde... Ruído distante de trovão... Solidão... Silêncio.

Quarta Parte: Marcha para o Suplício

Ele sonha que matou a mulher amada e que, condenado à morte, caminha para o suplício. O cortejo avança ao som de uma marcha ao mesmo tempo sombria e feroz, tão brilhante como solene, na qual um ruído surdo de passos graves sucede sem transição a cintilantes relâmpagos. No final, a idéia fixa aparece por um instante, como um último pensamento amoroso, interrompida pelo golpe fatal.

Quinta Parte: Sonho de uma Noite de Sabá

O herói vê-se num sabá, no meio de uma tropa ameaçadora de sombras, feiticeiras e monstros de todo tipo, reunidos para o seu funeral. Ruídos estranhos, gemidos, gargalhadas; gritos distantes aos quais outros gritos parecem responder. A melodia amada aparece novamente, mas perdeu seu caráter de nobreza e timidez. Agora, não é mais do que uma melodiazinha de dança ignóbil, trivial e grotesca. É ela que vem ao sabá... Estrondos de alegria em sua chegada... Ela mistura-se à orgia diabólica... Dobre de finados, paródia burlesca do Dies Irae. Ronda do Sabá, Ronda do Sabá e Dies Irae juntos.



Nenhum comentário:

Postar um comentário