quinta-feira, 20 de maio de 2010

A personificação da ópera

Ele foi o compositor italiano mais popular do século 19. Melhor: o compositor lírico mais popular de sua época. As árias mais famosas de suas 26 óperas não foram cantaroladas nas ruas e assobiadas apenas quando estrearam. Giuseppe Verdi conseguiu o milagre de ser intensamente popular em vida, e o tempo – outro milagre – jogou a seu favor. Suas óperas permanecem como o eixo fundamental das programações dos teatros de ópera em todo o mundo.

Não há como falar da obra de Verdi sem falar do homem que ele foi. Filho de um estalajadeiro e de uma fiandeira, sua educação se dá pelo som rude de rabecas e flautas tocadas por viajantes que se hospedavam nas humildes instalações de sua casa. Verdi não teve em sua infância uma formação de base, não teve de seu pai o apoio necessário, não teve de seus professores a instrução correta, mas algo suplantava tudo isso: o seu amor pela música.

Sério e dedicado, Verdi nunca deixou que as inúmeras dificuldades o afastassem do sonho de se tornar um músico reconhecido. Graças à proteção do comerciante Antonio Barezzi, iniciou seus estudos na escola de música de sua cidade natal. Foi recusado no exame que prestou para o Conservatório de Música de Milão, que hoje leva seu nome. Após o relativo êxito obtido com sua primeira ópera no Teatro alla Scala, em menos de um ano perde sua mulher e seus dois filhos, e sua segunda ópera fracassa. Nesse momento muito difícil, mais uma vez a música faz com que ele renasça. Graças a Nabucco e seu eterno coro Va, Pensiero, Verdi se torna um dos maiores nomes da ópera italiana. Seus sucessos se sucederam com força e constância jamais vistas na história da ópera. Passou, em seus mais de 50 anos como compositor, pelas mais diversas modas e movimentos. Viu a criação dos dramas líricos de Wagner, do Fausto, de Gounod, da Carmen, de Bizet, de Boris Godunov, de Mussorgsky, sem nunca perder o foco e desviar sua trajetória sob o efeito dessas novas idéias estéticas.

Quando resolveram adaptar a obra de William Shakespeare, em geral os compositores de ópera banalizaram e simplificaram as peças do dramaturgo inglês. Como Ambroise Thomas, que, em seu Hamlet providenciou um final feliz em que, em vez de morrer, o protagonista é coroado rei da Dinamarca. Nas mãos de Gioachino Rossini, a história de Otelo, o mouro de Veneza que as intrigas de Iago levam a matar, por ciúme, a mulher, Desdêmona, também não empolgou. Foi preciso que Verdi, auxiliado por um libretista de talento, pusesse as mãos na obra para que surgisse, finalmente, uma ópera que fizesse justiça à riqueza da dramaturgia shakespeariana.

Arrigo Boito, autor do libreto, tinha também veleidades de compositor, e sua ópera Mefistofele – baseada em Fausto, de Goethe – é ocasionalmente encenada nos grandes teatros de ópera do planeta. Ele condensou e respeitou as linhas gerais da intriga de Shakespeare, criando, ainda, um monólogo de grande efetividade – o Credo – para o vilão Iago. Considerada a mais trágica de todo o repertório de Verdi, é um tratado sobre o mal e o ciúme, admirável pela riqueza de detalhes na escrita orquestral e na busca por uma textura mais contínua. “Drama musical”, revolucionou a tradição operística italiana ao acabar com a separação rígida entre recitativos (texto) e ária (canto).

No libreto de Boito, a trama shakespeariana encontrou o casamento perfeito com uma música que ultrapassa as fronteiras do melodramático para aproximar-se das tragédias gregas. A orquestração eleva a temperatura dramática, assim como os monólogos do protagonista e a cena desesperançada da morte de Desdêmona no último ato. Estava aberto o caminho para as grandes óperas, mais tarde, de Giacomo Puccini.

Detalhista ao extremo com os libretos de suas óperas, Verdi estabeleceu seus tipos vocais básicos em Ernani. Os femininos eram mais flexíveis, enquanto os masculinos eram o barítono impetuoso e determinado, o tenor corajoso e, por vezes, desesperado e o baixo severo. O talento do compositor para as situações trágicas e heróicas encontrou espaço cativo na Itália do século 19, que, separada em reinos diferentes, lutava por unidade. Não à toa, na obra de Verdi os temas políticos são freqüentes – e ele próprio exerceria um mandato de deputado na Itália unificada.

Verdi regeu nos principais teatros da Itália, França, Áustria e Inglaterra. Inspirado em Shakespeare, fez, além de Otello, Macbeth e Falstaff. Nos anos 1870, pensou em abandonar a ópera, dedicando-se à composição de seu Réquiem, obra inspirada no poeta Manzoni. Em 1879, Arrigo Boito, com o editor Giulio Ricordi e o maestro Franco Faccio, incentivou Verdi, à beira dos 70 anos, a escrever uma nova ópera, Otello. A obra foi concluída apenas em 1886, fruto de trabalho lento e minucioso. Símbolo da Itália unificada (o Coro dos Escravos Hebreus, da ópera Nabucco, era cantado nas ruas como um hino italiano informal), Verdi morreu em Milão, rico e autoritário, no início de 1901. Mais de 28 mil pessoas acompanharam seu cortejo.

A obra de Giuseppe Verdi tem a nobreza e a simplicidade de seu caráter. Era um camponês humilde, sensível e entusiasta. Não criou nenhuma doutrina ou sistema. Acreditava que somente a sinceridade justificava a arte. E essa deve ser a busca de um intérprete de uma ópera de Verdi: transmitir ao público a verdade do drama, dos personagens e, conseqüentemente, de nós mesmos.

Certa vez perguntaram a Maria Callas, a diva das divas líricas, o que era a ópera. “Verdi”, ela respondeu. Então, vamos ouvir, no vídeo abaixo, um trecho de Otello:

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