domingo, 2 de maio de 2010

A mitologia da Rússia pagã


Uma revolução rítmica inigualável; fantástica representação de uma “anarquia organizada” da natureza; exercício único de diluição de motivos tradicionais em uma estrutura erudita; magnífica exploração da politonalidade e de registros instrumentais incomuns. Não faltam motivos para que A Sagração da Primavera seja considerada a composição clássica de maior repercussão do século 20, legítimo fruto modernista. Sobre o surgimento da obra, o compositor russo Igor Stravinsky deu diferentes explicações ao longo da vida. A versão mais difundida é a de que em 1910 ele teria sonhado com um “solene ritual pagão: os velhos sábios sentados em círculo observam a dança de uma jovem que será sacrificada para tornar propício o deus da primavera”.

Para desenvolver a temática mítica do eterno retorno, Stravinsky precisava de um especialista nos primórdios do povo russo. Procurou o pintor e etnólogo Nicolas Roerich, que o auxiliou na concepção cênica e de enredo de um balé – as composições mais relevantes de Stravinsky até então haviam sido escritas para esse tipo de apresentação.

O balé A Sagração da Primavera estreou em maio de 1913, em Paris, com a companhia Ballets Russes. A coreografia era de um gênio da dança, o russo Vaslav Nijinky. A reação da platéia, contudo, foi de fúria. O tumulto perturbou o orgulhoso Stravinsky, que tentaria de todas as formas minimizar a importância do balé. Em 1920, ele chegou a dizer que a idéia musical “pura” veio antes do conceito inspirado na Rússia pagã.

Tudo isso não passou de bravata. O célebre solo de fagote da introdução foi adaptado de uma música tradicional lituana, conforme o próprio Stravinsky diria a seu biógrafo, André Schaeffner. O uso atípico do registro mais agudo do instrumento pretendia evocar o som do dudki, um antigo instrumento de sopro eslavo. Mesmo o caráter dissonante da obra deve muito às escalas de oito tons, exploradas ocasionalmente por compositores russos do século 19, como Modest Mussorgsky e Nikolai Rimsky-Korsakov – este, por sinal, mestre do jovem Stravinsky. Por certo, a maestria de Stravinsky esteve em complexas combinações sonoras, que dissimulavam sua origem cultural sem apagá-la. É esse um dos motivos pelos quais A Sagração da Primavera soa ao mesmo tempo universal e particular, moderna e atávica.

Mas a inovação mais festejada da obra-prima de Igor Stravinsky foi o uso do ritmo. Quebrando paradigmas, A Sagração da Primavera se baseia em células musicais (fragmentos da melodia) que se repetem, se alteram e se “atropelam”, enquanto a métrica se altera a toda hora. Mesmo quando esta se mantém estável, diferentes camadas de instrumentos executam simultaneamente frases (numa aproximação com a nomenclatura gramatical, trechos que transmitem um sentido completo) em tempos distintos. Como disse o acadêmico inglês Peter Hill em seu estudo sobre A Sagração, é como se cada linha de execução se mantivesse “indiferente” à outra, o que confere à obra um caráter “cubista” – uma analogia comum que se faz entre a música e a pintura do espanhol Pablo Picasso.

Esse aspecto de livre colagem aparece em motivos que se entrecortam e em dissonâncias duras e repetitivas. Não era uma montagem aleatória: Stravinsky dizia que, antes de conceber as idéias melódicas, estabelecia relações rítmicas entre elas. A orquestra era uma atração à parte: só a seção de sopros contava com 38 instrumentos (normalmente o número não chega à metade). Na percussão, além da diversidade de instrumentos menores, havia nada menos que nove tímpanos (a Nona de Beethoven, por exemplo, emprega dois). Com todo esse aparato, poderiam ser executadas transições bruscas, de partes solistas tocadas em pianissimo a ataques de toda a orquestra. Por tudo isso, A Sagração da Primavera é ainda hoje capaz de chocar ouvintes pouco familiarizados com a música erudita moderna.

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