sexta-feira, 4 de junho de 2010

O retrato de um romântico

Aos 15 anos, Robert Schumann começou a escrever um diário, hábito que manteve por toda a vida. A páginas tantas, ele anotou: “O que os homens não podem me dar, a música me dá. Todos os elevados sentimentos que eu não consigo traduzir, o piano os diz para mim”. A frase resume a relação do artista com sua obra. Para Schumann, a arte e vida se confundiam. Ele encarnou como nenhum outro compositor de seu tempo o ideal romântico. Além de compor, também escrevia. Era poeta. A literatura tinha para ele um peso comparável ao da filosofia para Wagner. Adolescente, leu todos os dramas de Schiller; e, aos 43, releu as novelas de Johann Paul Richter, dois dos mais populares autores românticos alemães. “Qualquer tentativa de compreender sua música passa pelo conhecimento da literatura”, garante o pesquisador estadunidense John Daverio, autor de uma biografia do compositor lançada em 1998.

Robert Schumann foi antes de tudo um homem culto e bem educado. Apaixonado por literatura desde criança, tinha grande familiaridade com as obras de Shakespeare, Johann Paul Richter e Lord Byron. Tal ligação vinha da devoção ao pai, que era bibliotecário. Ele morreu quando o compositor tinha 16 anos. Após a morte do pai, Schumann foi estudar Direito em Leipzig e Heidelberg, na Alemanha. Mas suas amizades e o fascínio por Paganini o levaram à música.

O compositor teve dois grandes mestres: Heinrich Dorn e Friedrich Wieck. Este último era pai de Clara, bela, jovem e talentosíssima pianista. Durante mais de cinco anos, Schumann sofreu com a oposição de Wieck à sua união com Clara. Foi nesse período que compôs suas obras-primas para piano solo, como Carnaval, Kinderscenen (Cenas Infantis) e Kreisleriana. Clara, reconhecida como virtuose do piano, divulgou essas músicas pela Europa, firmando o nome de seu amado como grande compositor.

Schumann sofreu muito. Não conseguiu ser um grande pianista por problemas na mão. Não se firmou como pedagogo nem como regente. Sua vida era compor. Por várias vezes entrou em depressão e chegou a tentar o suicídio, o que não o impediu de reconhecer o talento de seus contemporâneos. Ele foi um intelectual de riquíssima produção artística, compondo obras-primas para a música de câmara, para piano solo, concertos para piano, violino e violoncelo, ciclos de canções, dentre elas Dichterliebe, além de quatro sinfonias, uma missa, um réquiem e uma ópera.

O amor desmedido pela pianista Clara Schumann, a quem cortejou durante muito tempo, deixou profundas marcas na obra do compositor. E foi exatamente a confluência entre literatura, música e seu sentimento por Clara que resultou na criação do ciclo Dichterliebe (Amor de Poeta), conjunto de 16 canções baseadas em poemas líricos do seu compatriota Heinrich Heine.

Traduzido para o português, lied significa canção, normalmente escrita em língua alemã e com arranjo para piano e voz. Franz Schubert foi o grande representante desse tipo de arte ao compor mais de 600 canções. Doze anos após a morte de Schubert, em 1840, Schumann compõe 138 lieder, o que representa cerca de metade de toda a obra do gênero criada por ele durante seus 46 anos de vida. A produção prolífica em tão curto intervalo de tempo marcaria aquele período, denominado, de acordo com os biógrafos do compositor, como o “ano do lied”.

Na mesma época, Schumann consegue, enfim, se casar com a mulher de sua vida. Com o casamento, surgia uma fase de rara inspiração, relatada pelo próprio compositor em carta à amada: “Não posso lhe dizer como tudo me vem facilmente... Componho em pé, ou caminhando, não mais necessariamente ao piano. É uma música totalmente diferente daquela que primeiro passa pelos dedos; é muito mais direta e melodiosa. Tenho tanta música em mim que poderia cantar o dia inteiro”.

A nova música a que Schumann se refere na carta originaria a composição de todos os 138 lieder, incluindo Dichterliebe. As 16 canções do ciclo, interligadas entre si, formam uma única e grandiosa obra. A poesia de Heine se une, se confunde e até contrasta com as melodias simples – no entanto rigorosas e carregadas de sentimentalismo – criadas por Schumann. O compositor consegue, por meio da abstração musical, desenhar cenas de romantismo, ligadas diretamente às palavras. As canções são ora bucólicas e idílicas – contemplando a beleza da natureza -, ora carregadas de desolação e mágoa, caracterizando o lado doloroso do amor.

Schumann costumava dizer que “os sons estão além das palavras”. Mesmo para ele, um apaixonado por literatura e poesia, a música era capaz de exercer supremacia sobre qualquer outro tipo de manifestação artística. Em Dichterliebe, a arte pianística apresenta-se como poesia musical; fragmentos que deixam claros os motivos pelos quais Schumann é considerado por muitos o mais romântico dos compositores.

A música de Schumann é um universo de generosidade, de grande elucubração e, ao mesmo tempo, de absoluta espontaneidade. Sua música tem a força da natureza, tem a grandeza de seu espírito e a paixão daqueles que realmente souberam amar.

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