segunda-feira, 7 de junho de 2010

Convocação à fraternidade universal

No dia 7 de março de 1824, os privilegiados espectadores sentados na platéia do teatro Kärthnerthor, em Viena, então capital do Império Austro-Húngaro, mal sabiam que estavam para presenciar a primeira audição mundial da maior obra-prima da história da música. Ainda que o autor já fosse uma celebridade, recebido naquele mesmo dia com uma ovação digna das platéias de música pop de hoje, a reação foi surpreendente. O comissário de polícia precisou intervir para silenciar a explosão de aplausos na chegada do alemão Ludwig van Beethoven à primeira apresentação de sua Nona Sinfonia. Afinal de contas, o público já estava na quinta ovação – mais do que as três que eram regra para a família imperial. Todo esse festejo acolhia um homem que não era empregado do Estado, que perdera completamente a audição e que, durante a última década de decadência física e silêncio criativo, injuriara abertamente a nobreza, os tribunais e o imperador austro-húngaro, Francisco I.

Após as palmas, um grande estranhamento. Até então, a sinfonia – forma musical para orquestra desenvolvida e consagrada durante o classicismo, construída em geral por três ou quatro grandes seções independentes chamadas movimentos – excluía por definição as vozes humanas. No entanto, no palco sentavam-se quatro solistas e um coral em quatro partes. Para aumentar a perplexidade, enquanto duas flautas, dois oboés, duas clarinetas, dois fagotes, quatro trompas, dois trompetes, tímpanos e cordas desenrolavam movimentos que superavam a racionalidade clássica, permaneciam em silêncio o coral e os solistas, o flautim, o contra-fagote, os três trombones, o triângulo, os pratos e o bumbo sinfônico, coisa que não era habitual. Eles somente entrariam no quarto e último movimento.

Três anos antes de sua morte, Beethoven realizava uma vontade que vinha desde os 22 anos. Conforme o filósofo e jurista Bartholomäus Fischenich comentara com a irmã de Friedrich Schiller, já em 1793 o compositor queria musicar verso por verso An die Freude (Ode à Alegria), do poeta alemão. E era o que fazia no derradeiro movimento da obra, quebrando a última barreira do modelo sinfônico. “Oh, amigos, não chega desses sons? Entoemos algo mais prazeroso e alegre!”, vibrou o barítono em recitativo. Os baixos do coro responderam-lhe forte – “Freude, Freude” (alegria, alegria) – para que, com a orquestra silenciada, começasse a solar um dos temas mais conhecidos da música ocidental, que proclama: “alle Menschen werden Brüder” (“todos os homens serão irmãos”).

Complexidade
A Nona de Beethoven é considerada a culminância da composição sinfônica. Tido como o pai do gênero, o austríaco Joseph Haydn compôs mais de cem sinfonias; o também austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, que só viveu 35 anos, fez 40. Já Beethoven parou em sua nona – e isso não foi por acaso. Ele transformou a sinfonia, até então um entretenimento cortês, numa expressão monumental do intelecto e das emoções. Impregnou nas estruturas clássicas liberdade e fantasia, retomando a rica polifonia barroca e trazendo novas forças destrutivas, que davam à sua música caráter heróico: a obra parecia lutar contra ela durante o desenvolvimento, até superá-las.

Enquanto suas duas primeiras sinfonias se aproximam do modelo haydniano, Beethoven superou seu antigo professor e a si próprio a cada composição. Progressivamente, estendeu a complexidade da orquestração, o virtuosismo instrumental, a profusão e o desenvolvimento de temas e duração da peça. Os 15 minutos de uma sinfonia típica de Haydn foram quadruplicados na Nona de Beethoven. Com uma orquestra duas vezes maior que a de seu mestre, Beethoven inflou os registros mais graves com violas, violoncelos e contrabaixos. Isso trouxe o aspecto pesado e escuro de sua obra. Os baixos passaram a assumir melodias, dialogando com as demais cordas – um desafio para instrumentistas acostumados a executar apenas bordões no acompanhamento.

No entanto, a obra de Beethoven, reconhecida como uma transição para o romantismo, não descartou o classicismo. Ele manteve em suas composições a forma sonata, uma estrutura racional de composição que era o cerne do estilo clássico e se baseava na exposição, desenvolvimento e recapitulação de um material musical. A diferença estava na ênfase. Até Haydn e Mozart, o coração da sonata residia na exposição. Agora, com a complexidade harmônica, rica em modulações, transferiu-se para o desenvolvimento, que assumiu dimensões até então inimagináveis.

Beethoven levou a cabo essa expansão das formas herdadas do classicismo durante a maior crise de sua biografia. “Há tempos não consigo escrever com facilidade. Sento-me, penso e penso, e consigo arranjar tudo, mas nada sai do papel. Um grande trabalho me perturba imensamente no início”, escreveu para o jornalista Johann Friedrich Rochlitz, em 1822.

Depressão
A partir de 1813, devido ao agravamento da perda da audição, o músico entrara em uma espiral de decadência física, psicológica e moral, dominada por pensamentos suicidas e persecutórios. Surdo, Beethoven era considerado um recluso excêntrico, se não lunático, tomado por acessos de ira e sentimento de perseguição.

Os relatos dos contemporâneos são implacáveis: para eles, o comportamento era feio, malvisto e até repulsivo de tão sujo. Baixo, tinha a farta cabeleira desleixadamente crescida e o rosto largo marcado pela varíola e por cortes de lâmina de barbear. Seus movimentos deselegantes faziam-no derrubar constantemente o tinteiro sobre o piano. Ao contrário da limpeza e organização dos manuscritos de Mozart, Franz Schubert ou Felix Mendelssohn, os seus eram cheios de borrões, manchas de gordura, datas e comentários rabiscados nas margens. Apesar do prestígio, nunca conseguiu estabelecer um relacionamento amoroso, permanecendo solteiro e solitário.

Autor de Fausto, o escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, depois de ter visitado o compositor no resort tcheco de Teplitz em 1812, comentou com um amigo berlinense: “Seu talento impressionou-me, mas infelizmente tem uma personalidade indomesticada. Não está de todo errado ao considerar o mundo repulsivo, mas sem dúvida não faz esforços para torná-lo mais agradável para ele ou para outros. Deve-se mostrar-lhe compaixão, pois está perdendo a audição, coisa que afeta menos seu lado musical que o social”.

Em 1815, ano que foram esboçadas as primeiras idéias para a Nona, Beethoven perdeu um dos irmãos mais novos, Kaspar Karl, e se meteu em um dos episódios mais desgastantes e ruidosos de sua biografia: uma guerra contra a cunhada, Johanna Reiss -, a quem chamava de “dama da noite” – pela guarda do sobrinho Karl, então com 8 anos. Uma batalha em que não faltou tentativa de suicídio de Karl quando este se encontrava sob a custódia do tio cada vez mais possessivo e irascível. “Oh, Deus, meu guardião, minha rocha, meu tudo; vês meu coração e sabes como me deprime fazer mal a outros ao fazer o bem a meu querido Karl”, diria o compositor em seus diários. Para piorar, morreria em 1816 seu amigo e benfeitor príncipe Franz von Lobkowitz, o que fez diminuir em um terço sua renda. E foi nessa batalha contra as adversidades que surgiram a grandiosidade da música de Beethoven e o poder de arrebatar e comover que ela conserva até hoje.

Parte cantada da sinfonia com base nos versos de À Alegria, do poeta Friedrich Schiller:

Baixo
Ó, amigos, não neste tom!
Juntemos nossas vozes de forma prazerosa
E mais alegre! Alegre!

Coro e baixo
Alegria, bela centelha divina,
Filha de Elísio,
Ébrios de fogo entremos,
Celeste, em teu santuário!
Tua magia volta a ligar
O que o costume separou.
Todos os homens se tornarão irmãos
Sob suas ternas asas repousam.

Coro e quarteto vocal
Aqueles que já possuem o tesouro maior
De ser o amigo de um amigo,
Que já conquistou uma mulher amável,
Rejubilem-se com a gente!
Sim, e mesmo aquele
Que conquistou apenas uma alma!
Mas aquele que falhou
Que se afaste desta Aliança!

Coro e quarteto vocal
Todos os seres bebem da Alegria
Nos seios da Natureza
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos dá beijos e vinho
E um amigo leal até a morte.
Aos vermes foi dada a alegria da vida
E o Querubim resta diante de Deus.

Coro e Tenor
Felizes, tal como sóis voadores
Através do plano celeste celestial,
Corram alegremente, irmãos, vossos caminhos,
Tal como o herói diante da vitória.

Ágil transição orquestral em forma fugada

Coro
Alegria, bela centelha divina,
Filha de Elísio,
Ébrios de fogo entremos,
Celeste, em teu santuário!
Tua magia volta a ligar
O que o costume separou.
Todos os homens se tornarão irmãos
Sob suas ternas asas repousarão.

Coro
Abracem-se, ó, milhões!
Projetem este beijo para todo o mundo!
Irmãos, além do céu estrelado
Mora um Pai Amado.

Coro
Abaixem-se diante dele, ó, milhões?
Percebe seu criador, ó, mundo?
Procure-os acima do Céu estrelado!
Sobre as estrelas deve ele morar.

Coro
Abracem-se, ó, milhões!
Projetem este beijo para todo o mundo!
Procure-o acima do Céu estrelado!
Sobre as estrelas deve ele morar.

Quarteto vocal e coro
Alegria, filha de Elísio,
Tua magia volta a ligar
O que o costume separou.
Todos os homens se tornarão irmãos
Sob tuas ternas asas repousarão.

Coro
Abracem-se, ó, milhões!
Projetem este beijo para todo o mundo!
Irmãos, além do céu estrelado
Mora um Pai Amado
Alegria, bela centelha divina,
Filha de Elísio.

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