sábado, 22 de maio de 2010

Música erudita para o povo

Em 1791, seu derradeiro ano de vida, Mozart compôs simultaneamente suas duas últimas óperas, e elas não podiam ser mais diferentes entre si. A Clemência de Tito foi feita para a coroação de Leopoldo II como rei da Boêmia. Para estar à altura da ocasião, seguia as convenções do solene e heróico gênero do século 18 conhecido como opera seria. Já A Flauta Mágica não surgiu da encomenda de uma corte, mas sim de um projeto em comum com Emmanuel Schikaneder, diretor de um infame teatro no subúrbio vienense de Wieden, cuja platéia cheirava tanto a suor e cerveja que o pensador iluminista Johann Pezzl aconselhou que quem lá fosse levasse consigo cigarros.

Com uma ousadia que entrava em choque com o gosto clássico das cortes européias, A Flauta Mágica foi um sucesso estrondoso: naquele ano de 1791, a ópera foi levada mais de 50 vezes ao palco em menos de três meses.

O compositor italiano Antonio Salieri, injustamente apresentado como assassino de Mozart no filme Amadeus, “adorou não só a música como o libreto e tudo o mais”, escreveu o autor da Flauta Mágica em uma de suas últimas cartas. “Ouviu com a maior atenção da abertura até o final, e não houve um só trecho que não lhe arrancasse um bravo ou um bello!”.

Quando a ópera foi a Frankfurt, Catharina Elisabeth Textor, mãe do poeta Goethe, escreveu: “Nenhum homem admitiria que não assistiu. Todos os artesãos, jardineiros e até os camponeses, cujos filhos fazem os papéis de macacos e leões, vão lá assistir. Nunca houve um espetáculo assim aqui antes!”.

O que pode parecer vulgar foi, na verdade, uma das maiores revoluções na história da música. Pela primeira vez, a música erudita desceu do topo da hierarquia social e abandonou as amarras das convenções da corte ou do altar para tornar-se algo ao mesmo tempo sofisticado e popular, composto tanto para o príncipe quanto para seu criado.

Mesmo hoje, sua música parece ter esse apelo mais amplo. Em 1975, o cineasta Ingmar Bergman produziu uma encantadora filmagem da ópera, cantada em sueco. Na década de 1990, o contratenor pop Edson Cordeiro difundiu no Brasil a ária da Rainha da Noite, levando à televisão com seus agudos o espanto que a soprano Josefa Hofer deve ter causado na platéia rude do Theater auf der Wieden. Cordeiro chegou até a fazer um dueto sexualmente invertido em videoclipe com a roqueira Cássia Eller – ele com Mozart, ela com Rolling Stones. Está na capacidade de criar melodias simples, mas fortes, tal como as das canções folclóricas, uma das chaves desse sucesso.

Ambos maçons, Mozart e Schikaneder se conheceram quando o ator passou por Salzburgo com seu grupo teatral. A maçonaria, condenada desde 1738 por uma bula papal e proibida pela arquiduquesa austríaca Maria Theresa, nunca havia gerado uma peça significativa. A relação da Áustria com a organização sempre fora ambígua – católica, mas iluminista, fazia-lhe vistas grossas. No entanto, a repressão começara a aumentar em relação à Revolução Francesa, com a vigilância e o cerco patrocinados pelo imperador Leopoldo. Com o fechamento de lojas maçônicas, Schikaneder encontrou a oportunidade de explorar cenicamente os ritos proibidos, fazendo da Flauta Mágica uma apologia da sociedade secreta.

Ouça, no vídeo abaixo, a famosa ària da Rainha da Noite, trecho da ópera A Flauta Mágica:

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