quinta-feira, 13 de maio de 2010

A música em estado puro


Theodor Adorno chamou A Arte da Fuga de “economia de motivos”. Segundo o filósofo alemão, trata-se de uma obra perfeita, a “arte da dissecação”, em que o tema é esgotado até os mínimos componentes. Última obra de Johann Sebastian Bach, ela o ocupou, cego, até o fim de seus dias, sendo que o Contrapunctus XIV – a fuga inacabada – é interrompido no meio da terceira seção, com a morte de Bach, em 1750. Em nota na impressão de 1751, Carl Philipp Emanuel, filho do compositor, inseriu os dizeres: “Sobre esta fuga, à qual se acrescentou um contratema com as notas correspondentes às letras B.A.C.H [sibemol-lá-dó-si], o autor faleceu”.

A Arte da Fuga é uma obra que estava além dos gostos musicais da época de Bach. No século 17, o contraponto, aqui explorado com riqueza, era praticamente desconhecido, e a fuga era considerada algo superado. De acordo com Roland de Candé, no livro História Universal da Música, “já na época de Bach, a arte baseada na ciência do contraponto era considerada uma disciplina fora de moda (...). O contraponto e a fuga tornaram-se entediantes exercícios escolares, criando preconceitos desfavoráveis em relação à forma”.

Nas 14 fugas e quatro cânones que compõem a mais longa das obras do compositor alemão predomina o espírito gótico do quadrivium, que, no campo do conhecimento, compreendia aritmética, geometria, música e astronomia. A música não seria apenas uma prática espiritual; uma ciência matemática, numericamente definível. A última obra de um Bach cego e debilitado seria o somatório de sua profissão de fé musical, a “abstração da música”, segundo o escritor Franz Rueb.

Tão abstrata que não foi escrita para nenhum instrumento ou formação musical específicos. O compositor registrou na partitura quatro vozes neutras, permitindo inúmeras interpretações ao longo da história, como a do canadense Glenn Gould ao piano; a do inglês Davitt Moroney ao cravo; a do quarteto de cordas americano Juilliard String Quartet; as de formações camerísticas como a alemã Musica Antiqua Köln, regida por Reinhard Goebel; ou ainda, a interpretação do quinteto de metais Canadian Brass. Por isso, o compositor austríaco Arnold Schoenberg afirmou que A Arte da Fuga une passado e futuro, ficando no limiar da música moderna.

Pesquisas de comparação da caligrafia de Bach estimam que o compositor tenha começado a trabalhar na Arte da Fuga em 1742, e a primeira versão da obra foi finalizada em 1745. Em seus últimos três anos de vida – a partir de 1747, portanto -, o compositor reviu e ordenou todas as suas partituras, ao mesmo tempo em que desenvolveu o restante das peças da Arte da Fuga.

A primeira edição impressa da Arte da Fuga incorpora também uma peça não relacionada ao restante da obra, o prelúdio coral BWV 668a, Von deinen Thron Tret Ich Hiermit (Perante Teu Trono Me Apresento), ditado por Bach no leito de morte – uma conclusão, pelas circunstâncias, apropriada. As “cores sonoras”, como define o compositor Anton Webern, e a grandiosidade dessa obra de Bach só foram apresentadas publicamente quase 200 anos depois da sua morte, em junho de 1927.

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