Noutra ocasião, houve um incêndio próximo ao apartamento onde esse mesmo senhor de jeito distraído, sempre metido em calças pula-brejo, morava. E ele pediu autorização dos bombeiros para ver de perto as dezenas de cadáveres carbonizados. E, quando os restos mortais do imperador Maximiliano I foram trasladados do México para Viena, o velhinho implorou para examinar com as próprias mãos o crânio e os ossos do monarca. Ele também mantinha em casa o crânio de um primo que se suicidou com um tiro na cabeça.
Tais episódios protagonizados pelo compositor Anton Bruckner compõem uma figura desequilibrada. Ele era de fato esquisitão. Mas não se deixe enganar. Bruckner foi um formidável compositor. Richard Wagner o considerava o único herdeiro digno de Beethoven.
Desde Bach, a música não encontrava outro compositor tão religiosamente devotado quanto o austríaco Anton Bruckner. Filho de professores, teve seu destino, que parecia certo na mesma direção dos pais, mudado em função de sua paixão pelo órgão. Sua educação no convento de St. Florian fez dele um incondicional devoto do catolicismo e um apaixonado pelo estilo barroco.
Além da profunda religiosidade, Bruckner desenvolveu uma obsessão pela numerologia e uma mórbida atração por cadáveres, principalmente depois de ter o crânio de Beethoven em suas mãos. Era, no entanto, uma pessoa de modos simples. Interiorano, sentia-se deslocado na sofisticada sociedade vienense. Não teve muitas chances em vida e não possuía o espírito da autopromoção tão aguçado quanto o de outros compositores. Ele se alimentava de sua fé. Deixou uma obra de profunda espiritualidade, que abriu novos caminhos para a sinfonia na passagem do século 19 para o 20.
Sua paixão por Beethoven e sua simpatia por Wagner deixavam pouco espaço para que suas obras fossem executadas, principalmente em uma Viena dominada pela estética de Brahms. Para ter sua música aceita pelo grande público, revisou e deixou que outros revisassem inúmeras vezes suas sinfonias. Tanto que, atualmente, é uma intricada tarefa decidir qual é a versão mais autêntica.
Um bom exemplo é a sua Sinfonia N.7, composta entre setembro de 1881 e agosto de 1883. Ela passou por muitas revisões e, como foram realizadas sobre o próprio original, é extremamente difícil chegarmos ao que poderia ser versão de 1883. Trata-se de uma das obras mais maduras do mestre austríaco. Nela podemos sentir a sonoridade grandiosa do órgão – seu instrumento, que tantas vezes transportou para a orquestra -, seus sonhos e sua religiosidade. Religiosidade esta usada como fundamento para duas peças: a Ave Maria para coro a cappella, segunda de três escritas por Bruckner, e o Virga Jesse Floruit, um de seus vários motetos em latim.
Dentre as composições de Bruckner, escolhemos para analisar a grandiosa Sinfonia N.7. Como ocorreu com grande parte de sua obra, o austríaco, insatisfeito e incomodado com a crítica, reescreveu a Sinfonia N.7 em Mi Maior. A obra trouxe reconhecimento ao músico como grande sinfonista e abriu o caminho do sucesso. Bruckner, que estava acostumado a ver os ouvintes deixar os auditórios de forma fria depois das estréias de suas sinfonias, foi aplaudido por 15 minutos após o début da Sinfonia N.7 diante do público conservador de Leipzig, na Alemanha.
Mesmo depois do sucesso, também em Munique e em Viena, a composição não deixou de ser criticada por aqueles que ou não compreendiam a modernidade ou fingiam não entender apenas para rivalizar e desestabilizar Bruckner. Como fizera um de seus desafetos, o crítico tcheco Eduard Hanslick: “Nela [Sinfonia N.7] ouvi apenas uma escuridão interminável”. Ataques como esse levaram o compositor a revisar passagens da sinfonia, principalmente o belo e longo adagio, segundo dos quatro movimentos, dedicado à memória do compositor alemão Richard Wagner. Da original, de 1883, para a segunda versão, feita por Bruckner dois anos depois, algumas alterações foram feitas, como a inclusão de tímpanos, pratos e triângulo. Diante das duas versões, a obra vem ganhando diferentes interpretações de andamento e dinâmica, dependendo da regência. Uma passagem famosa é a batida dos pratos no clímax do adagio, que alguns maestros incluem, outros não.
O processo de reformulação das obras mostra como Bruckner era um perfeccionista em busca da composição ideal, o que, em parte, pode ser atribuído a sua solidão. O compositor não chegou a ter uma relação afetiva e sentimental, e há quem acredite que ele tivesse problemas mentais.
Bruckner começou a revolucionar seu trabalho depois de ter assistido à estréia da ópera Tannhäuser, de Wagner, em 1863. Muitos chegaram a classificar Bruckner como o “sinfonista de Bayreuth”, em referência à casa de ópera imortalizada pelo alemão. Na realidade, pode-se dizer que as grandes influências wagnerianas em Bruckner se devem à arte da orquestração, já que este ignorava os aspectos filosóficos e eróticos impregnados nas óperas do sentimental, mundano e profano Wagner.
Após o sucesso da Sinfonia N.7, a oitava obra sinfônica de Bruckner, finalizada em 1885, foi igualmente aclamada pelos críticos, firmando-o como um mestre do gênero instrumental para orquestras. Onze anos depois, o compositor morreu em Viena, deixando sua Sinfonia N.9 inacabada, com apenas três movimentos – considerados por muitos como o auge de sua capacidade criativa -, sem o finale.
Perceba, no vídeo abaixo, toda a devoção e grandiosidade dessa alma musical totalmente voltada à palavra de Deus em um trecho da Sinfonia N.7:
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